INSTITUTO BRASILEIRO DE ENSINO, DESENVOLVIMENTO E PESQUISA ANA KAROLINE P. DA SILVA
RUANDA: MEMÓRIAS DE UM GENOCÍDIO
BRASÍLIA-DF
2023
INSTITUTO BRASILEIRO DE ENSINO, DESENVOLVIMENTO E PESQUISA ANA KAROLINE P. DA SILVA
RUANDA: MEMÓRIAS DE UM GENOCÍDIO
Artigo apresentado como requisito para conclusão
da matéria de Direito Internacional de Conflitos
Armados pelo Instituto Brasileiro de Ensino,
Desenvolvimento e Pesquisa – IDP.
Orientador(a): Profs(a). Embaixador Rostyslav
Tronenko e Profa. Dra. Clarita Costa Maia
Brasília-DF
2023
RESUMO:
Este artigo de pesquisa discute a resposta da comunidade internacional ao genocídio em Ruanda em 1994. Aproximadamente 800.000 pessoas – a maioria membros do grupo étnico Tutsi – foram mortas impiedosamente durante o genocídio em Ruanda, um dos incidentes mais tristes e horríveis da história recente, que durou apenas 100 dias. Apesar da gravidade da situação, a comunidade mundial tem sido incapaz de agir de forma decisiva e tomar medidas para deter ou prevenir o genocídio. Este é o terceiro maior massacre desde 1950, e os únicos aos quais pode ser comparado são os ocorridos em Bangladesh e no Camboja na década de 1970. Em Ruanda se distinguem dois grupos étnicos: A maioria hutu e o grupo minoritário de tútsis. Houve alguma distinção entre “raças” desde a pré-colonização, contudo com a colonização, foram submetidas à opressão e exclusão. Isso se deve ao fato de que, apesar dos impactos da miscigenação, os pastores predominantemente, os tutsis, figuram ser uma população mais evoluída, com particularidades corpóreas mais delicadas e ressaltadas, semelhantes aos europeus. Os hútus nessa época eram vistos com uma estatura mais baixa e “brutos” com traços “feios”, devido ao nariz e boca grossos, cabelos e pele mais escuros. Desde a independência do país da Bélgica, os seus líderes sempre foram tutsis, num contexto de rivalidade étnica agravada com o tempo devido à escassez de terras e à fraca economia nacional, sustentada pela exportação de café. Em 6 de abril de 1994, o assassinato do general Juvenal Habyarimana (presidente de Ruanda 1973-1994) e a invasão da Frente Patriótica Ruandesa desencadearam uma série de massacres no país contra os tutsis, obrigando um deslocamento massivo de pessoas para campos de refugiados situados na fronteira com os países vizinhos, em especial Zaire (hoje República Democrática do Congo). Em agosto de 1995, tropas zairenses tentaram expulsar estes refugiados para seu lugar de origem. Quatorze mil pessoas são devolvidas a Ruanda, enquanto outras 150.000 se refugiam nas montanhas. Mais de 800.000 pessoas foram assassinadas e quase todas as mulheres que sobreviveram ao genocídio foram violentadas. Muitas das 5.000 crianças nascidas desses estupros foram assassinadas.
Palavras-chave: África, Ruanda, Genocídio, Organização das Nações Unidas, UNAMIR.
ABSTRACT:
This research paper discusses the international community’s response to the Rwandan genocide in 1994. Approximately 800,000 people – mostly members of the Tutsi ethnic group – were mercilessly killed during the genocide in Rwanda, one of the saddest and most horrific incidents in recent history, which lasted only 100 days. Despite the gravity of the situation, the world community has been unable to act decisively and take action to stop or prevent the genocide. This is the third major massacre since 1950, and the only ones to which it can be compared are those that occurred in Bangladesh and Cambodia in the 1970s. In Rwanda there are two ethnic groups: the majority Hutu and the minority group of Tutsis. There has been some distinction between “races” since pre-colonization, but with colonization they were subjected to oppression and exclusion. This is because, despite the impacts of miscegenation, the pastoralists, the Tutsis, figured to be a more evolved population, with more delicate and enhanced bodily features, like the Europeans. The Hutus at that time were seen as shorter and “brute” with “ugly” features, due to their thicker nose and mouth, darker hair, and skin. Since the country’s independence from Belgium, its leaders have always been Hutus, in a context of ethnic rivalry aggravated over time due to the scarcity of land and the weak national economy, sustained by coffee exports. On April 6, 1994, the assassination of General Juvenal Habyarimana (Rwandan President 1973-1994) and the invasion of the Rwandan Patriotic Front triggered a series of massacres in the country against the Tutsis, forcing a massive displacement of people to refugee camps located on the border with neighboring countries, especially Zaire (now the Democratic Republic of Congo). In August 1995, Zairian troops attempt to expel these refugees to their place of origin. Fourteen thousand people are returned to Rwanda, while another 150,000-take refuge in the mountains. More than 800,000 people were murdered, and all of the women who survived the genocide were raped. Many of the 5,000 children born of these rapes were murdered.
Key words: Africa, Rwanda Genocide, UN, UNAMIR
1 INTRODUÇÃO
O horrível e complexo genocídio que teve lugar em Ruanda no ano de 1994, um tema de grande interesse tanto para a comunidade acadêmica como para o público, ao examinar os elementos históricos, políticos, sociais e psicológicos que guiaram ao genocídio e que ainda hoje sugestionam como este é visto e compreendido, este trabalho procura discorrer sistematicamente como a humanidade recorda esta barbaridade. É essencial compreender o contexto histórico deste genocídio e a complexa dinâmica racial que existiu entre as populações Hutu e Tutsi, destrinchando as divergências profundas e as assimetrias de poder criadas pela colonização europeia no século XIX, que intensificou estas tensões.
As histórias e as descrições culturais do genocídio em Ruanda serão examinadas neste estudo. Tendo em conta, as consequências dos componentes como a identificação étnica, o trauma coletivo, os meios de comunicação social e as políticas governamentais, será estudada como as recordações particulares e coletivas são fundadas, comunicadas e reinterpretadas ao longo do tempo. Analisaremos igualmente como instituições como os tribunais e as comissões de verdade e reconciliação ajudam a moldar a história e a fazer justiça.
Os genocidas transformaram Ruanda, a nação mais populosa de África, numa terra deteriorada, destituída de relatos, histórias, depoimentos e humanidade, recorrendo a facões e masus (um porrete com pregos). Este silenciamento do extermínio é similar à maneira como muitos que sobreviveram ao Holocausto se lembram dos dizeres irônicos das tropas nazis nos campos de concentração, como refere Primo Levi em “Os Afogados e os Salvos”.
Seja qual for o fim desta guerra, a guerra contra vocês nós
ganhamos; ninguém restará para dar testemunho, mas,
mesmo que alguém escape, o mundo não lhe dará crédito.
Talvez haja suspeitas, discussões, investigações de
historiadores, mas não haverá certezas, porque destruiremos
as provas junto com vocês. E ainda que fiquem algumas provas
e sobreviva alguém, as pessoas dirão que os fatos narrados
são tão monstruosos que não merecem confiança: dirão que
são exageros e propaganda aliada e acreditarão em nós que
negaremos tudo, e não em vocês. Nós é que ditaremos a
história dos Lager [campos de concentração] (LEVI, 2004, p. 9)
O genocídio em Ruanda é um evento que o mundo jamais deve esquecer. Muitas vezes retratado como um conflito étnico, uma “guerra tribal” entre os tutsis e hútus, é importante que as potências globais não ignorem o componente externo que contribuiu para essa tragédia. A terrível carnificina foi resultado direto da dominação imperialista da Bélgica sobre Ruanda, que, baseada em supostas diferenças físicas entre tutsis e hútus, impôs uma segregação racial, fomentando um ódio entre uma população que compartilha uma história e origens comuns.
Diante de atos tão bárbaros, surge a questão fundamental de saber por que o genocídio ocorreu. Por que os hútus, que constituem a maioria da população de Ruanda, decidiram exterminar seus irmãos tutsis (incluindo seus amigos e familiares)? Por que a comunidade internacional não intercedeu? E como pode ser reconstruído um país cujo tecido social está tão profundamente dilacerado?
Este texto fornece uma breve visão geral da história de Ruanda e encontra algumas respostas possíveis para essas perguntas.
2 HISTÓRICO DE RUANDA
A República de Ruanda está situada no coração do continente africano, na região conhecida como África Central. O país faz fronteira com Uganda ao norte, Burundi ao sul, Tanzânia ao leste e República Democrática do Congo (antigo Zaire) ao oeste.
Igualmente conhecida como a “Terra das Mil Colinas”, Ruanda é configurada por um característico terreno montanhoso com declives acentuados. Ruanda está localizada na região dos Grandes Lagos da África centro-oriental. O país tem um território pequeno (26,338 km²), com uma população de 13,46 milhões de pessoas (Banco Mundial, 2021). Conforme o site oficial de Ruanda, o país tem uma paisagem diversificada, variando de florestas equatoriais densas e irregulares no Nordeste a pântanos e colinas e savanas tropicais no Leste.
Os idiomas oficiais são o quiniaruanda, o francês, o ingles e o suali. Dentro do grupo cultural-linguístico de Ruanda, há três subgrupos: hutus, tutsis e twas. Ruanda é caracterizada pela abundância de eucaliptos e bananeiras em seu panorama. A economia do país é fundamentada sobretudo na agricultura de subsistência, com ênfase no cultivo e exportação de chá e café. A moeda nacional de Ruanda é o franco ruandês.
Ruanda adota um sistema presidencialista como forma de governo, com o General Paul Kagame ocupando a posição de Presidente atualmente. Os poderes legislativos do país são compostos pelas Assembleias Nacionais e pelo Senado, de acordo com informações fornecidas pelo site oficial da República de Ruanda. A capital, Kigali, abriga uma população estimada em 1.248.000 milhões residentes e é considerada a principal metrópole do país. Além disso, outras proeminentes cidades abrangem: Batear, Bamba, Ruhengeri, Butare, Kayonza, Gisenyi, Kibuye, Cyangugu, Kibungu, Gitarama e Nyagatore.
2.1 SURGIMENTO DAS “ETNIAS”
O entendimento da narrativa da época pré-colonial de Ruanda é restringido devido à ausência de arquivos escritos, pois nesse período existia o predomínio da tradição oral. Durante essa época, os ruandeses não englobavam uma estrutura de grafia desenvolvida, o que sustentava à difusão de saberes e costumes de maneira oral, de geração em geração. Entretanto, essa perspetiva fundamentada na tradição oral pode ser suscetível a inconstâncias e, consequentemente, pode proceder em indagações menos confiáveis. A tradição oral é uma característica costumeiro em muitos territórios africanos.
Segundo relatos, Ruanda foi habitado inicialmente pelo povo pigmeu, conhecido como twa, que povoava cavernas e, atualmente, constitui cerca de 1% dos habitantes do país. Logo depois, os tutsis e hútus teriam se mudado para a região. Os hútus são uma população originária do bantu1 que se estabeleceu inicialmente nos estados do sul e oeste de Ruanda. Seguidamente, os tutsis, um povo nilótico originário das regiões leste e norte, teriam chegado à região. Essas são hipóteses fundamentadas em investigações e explorações históricas sobre a migração e origem dos variados grupos étnicos em Ruanda.
Conforme descrito por Gourevitch (2006), ao longo do tempo, os hútus e tutsis passaram a abraçar a mesma linguagem, professar a mesma devoção, contrair matrimônio entre si e viver de maneira integrada, sem desavenças territoriais, ocupavam as mesmas terras montanhosas, partilhando uma cultura política e social comum. Essa miscigenação e interação entre os dois grupos étnicos levaram historiadores a ultimamente apurar que os hútus e tutsis não podem ser examinados como agrupamentos étnicos diferenciados de forma adequada. Independentemente de sua mestiçagem, a divisão entre os hútus e tutsis prossegue, e suas origens remontam a uma época em que os hutus eram sobretudo agricultores e os tútsis criadores de gado. Devido à influência econômica do gado, os tútsis estavam envolvidos com a elite econômica e política de Ruanda. Esta fragmentação socioeconômica, fundamentada nas ocupações regulares de cada grupo, cooperou para a introdução de um sistema de poder desigual, no qual os tútsis executavam colocações privilegiadas. Esta dinâmica formou as interações entre hutus e tútsis ao longo da narrativa de Ruanda, embora as fragmentações principais terem sido progressivamente resolvidas por meio da fusão e do contato entre as duas tribos.
Esta fragmentação socioeconômica, fundamentada nas ocupações regulares de cada grupo, cooperou para a introdução de um sistema de poder desigual, no qual os tútsis executavam colocações privilegiadas. Esta dinâmica formou as interações entre hutus e tútsis ao longo da narrativa de Ruanda, embora as fragmentações principais terem sido progressivamente resolvidas por meio da fusão e do contato entre as duas tribos.
3 DOMINAÇÃO ESTRANGEIRA E CRIAÇÃO DO ESTADO DE RUANDA
O imperialismo pode ser descrito como uma política de expansão e domínio territorial, cultural e econômico de poderosas nações sobre outras. O século XX, foi marcado por grandes guerras e incursões dessa natureza, deixando para trás catástrofes irreparáveis em muitos países, como o genocídio em Ruanda. No século XIX, o país já era organizado num reino, quando foi colonizado pela Alemanha, na última década do século.
A partir das teorias pseudocientíficas raciais europeias, passou a ser cultivada a crença de uma “superioridade tutsi”, advinda de sua origem supostamente “mais europeia”, e a etnia passou a receber cargos administrativos dos colonizadores. Historicamente, o território que hoje compõe Ruanda, Partilhado na Conferência de Berlim (1884-85), era uma colônia alemã no coração da África, com as inúmeras sanções impostas à Alemanha após a Primeira Guerra Mundial, a colônia ruandesa foi anexada pela Bélgica ao Congo, passando para um regime administrativo muito mais restrito e repressivo.
O governo belga começou a incentivar a divisão étnica da população e apoiar determinados grupos conforme seus interesses. E isso funcionava como uma estratégia de controle da população ruandesa. A crença era reforçada pela Igreja Católica, que também atuava no país, e pelo sistema educacional. O pequeno território, como muitos, vitimados pelo imperialismo europeu, foi explorado, e sua população abusada, por quase um século.
O domínio belga foi muito mais direto e duro que o dos alemães
e, utilizando a igreja católica, manipulou a classe alta dos tutsis
para reprimir o resto da população – maioritariamente hútus e
demais tutsis – incluindo a cobrança de impostos e o trabalho
forçado, criando um fosso social maior do que o que já existia.
(HISTÓRIA, s.d., p.1)
O pequeno país africano manifesta um dos principais problemas da partilha da África e da criação de fronteiras artificiais. A delimitação do território ruandês uniu duas etnias adversárias num mesmo espaço geográfico: os tutsis e os hútus, estas etnias, antes de 1885, viviam como tribos em territórios distintos. Enquanto vigia o domínio alemão e belga, as tensões étnicas foram esmagadas pela opressão europeia.
Nos anos 50, mesmo com tentativas do rei de amenizar as tensões, os conflitos entre tutsis e hútus cresceu, militarizando-se e com episódios de massacre e imigração de tutsis. A circunstância permaneceu pior quando um rei tutsi sucumbiu, pretensamente devido a um colapso alérgico ocasionado por uma injeção dada por um médico belga, na qual as conexões já estavam suficientemente enfraquecidas – e isso aguçou a especulação de que o rei tivesse sido envenenado, o que desempenhou com que os tutsis fossem à luta confrontando os hútus.
No começo dos anos 60, o general belga que operava a revolução, denominado Guy Logiest, administrou um golpe de Estado e exonerou os dirigentes tutsis, trocando-os por chefes hútus. (RUANDA, s.d., p.1)
Em 1960, a Bélgica concedeu as primeiras eleições democráticas, com uma vitória hútu, que destronou a monarquia tutsi, o que resultou na ocupação de 90% das posições políticas mais pertinentes pelos hútus. A agitação terminou em outubro e uma administração interina, chefiado por Grégoire Kabybanda, um hútu, foi instituído. Aproximadamente 20 mil tutsis foram movidos de suas moradias e procuraram abrigo no exílio, contendo o rei Kigeri V, que foi designado sucessor do mwami. Mutara III após o seu falecimento repentino. O número de mortos estimado é de aproximadamente 15 mil tutsis. (GOUREVITCH, 2006, p. 59).
A independência foi conquistada em 1962, Grégoire Kayibanda se tornou presidente, então os hútus (que eram maioria) assumiram o poder no país e as tensões entre as duas etnias foram aumentando ao longo do tempo. O governo incentivava o extermínio de tutsis com a criação de milícias (conhecidas como Interahamwe) que atuavam nas ruas de Ruanda. Muitos tutsis fugiram do país e se refugiaram em países vizinhos. Um grupo rebelde, composto por expatriados tutsis, criou a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), atacando Ruanda em 1990, batalhando até que um acordo de paz fosse instituído, como suscitou em 1993.
4 GENOCÍDIO
Uma das produções mais célebres e reconhecidas a respeito do genocídio em Ruanda, denomina-se “Hotel Ruanda”, do diretor Terry George, relata os dias de aflição dentro do Hotel de Mille Collines, onde centenas de pessoas ficaram sitiadas num dos piores períodos da história moderna. Durante o genocídio, Paul Rusesabagina, então gerente e responsável pelo hotel, conseguiu abrigar os desafortunados abandonados à própria sorte pelo seu governo e pela comunidade internacional. No filme, o clima em Ruanda é tenso, e em abril de 1994, a rádio começou a informar que um “negócio” emergiria em Ruanda nos próximos dias, e que tiros e granadas seriam escutados.
“Nas semanas subsequentes, toda Kigali foi intimidada com um conflito bem programado para apagar as pessoas que assediariam o presidente Habyarimana”. (POWER, 2004, p. 381)
Um grupo de exilados tutsis formou uma frente rebelde, a Frente Patriótica Ruandesa (RPF), que invadiu Ruanda em 1990 e lutou continuamente até que um acordo de paz foi estabelecido em 1993. Porém, na noite de 6 de abril de 1994, um avião que transportava os então presidentes de Ruanda, Juvenal Habyarimana, e do Burundi, Cyprien Ntaryamira, ambos hútus, foi derrubado.
Extremistas hútus culparam a RPF e imediatamente começaram uma campanha bem organizada de assassinato. À RPF disse que o avião tinha sido abatido por Hutus para fornecer uma desculpa para o genocídio. Até hoje ninguém sabe se o atentado foi uma obra de milicianos insatisfeitos com o pacto, ou hútus que procuravam uma desculpa para dar início a guerra civil.
Com base nos fatos enunciados previamente, é notório que o homicídio do presidente foi proposital e ordenado pelos dirigentes hútus, e não pelos tutsis. A influência hútu andava descontente com o presidente há algum tempo, pois pensavam que ele não era suficientemente severo com os tutsis. Além disso, os habitantes estavam encarando um crescente empobrecimento. Para exacerbar a circunstância, o presidente havia delimitado tratados de paz e instituído cessar-fogo entre hútus e tutsis, tudo sob a monitorização da ONU.
Logo após o incidente, os Hutus, cacifados pelo governo francês e usando da máquina estatal para divulgar suas ideias, iniciaram na noite de 7 de abril, um dia após a morte do presidente, a perseguição, assassinato e estupro dos Tutsis, Twa e Hutus menos radicais. Alguns relatos descrevem padres matando fiéis que buscaram abrigo nas igrejas, professores degolando alunos e vizinho matando vizinho, alguns maridos mataram suas esposas tutsis, sob pena de serem mortos caso se opusessem. Bloqueios foram instalados nas rodovias onde tutsis eram mortos, pois nas carteiras de identidades mencionavam o grupo étnico das pessoas. Milhares de mulheres tutsi foram levadas e mantidas como escravas sexuais.
Em 100 dias, 800 mil pessoas foram executadas, repetidamente por ferimentos de facão. Os fanáticos tinham estações de rádio e periódicos que veiculavam propagandas de ódio. Os nomes das pessoas a serem mortas eram lidos nessas rádios. Conforme as aproximações mais precisas são de que entre 06 de abril e 4 de julho de 1994, foram eliminados entre 800 mil e 1 milhão de pessoas. Como resultado, de 8 a 10 mil pessoas sucumbiam por dia em todo o território. Isso significa, 333 e 416 pessoas executadas por hora, ou entre 5,5 e 6,9 vidas fossem extintas a cada momento.
A ONU e Bélgica tinham forças de segurança em Ruanda, mas não intervieram para conter a matança. Os Estados Unidos estavam determinados a não se envolver em outro conflito africano, um ano depois que soldados norte-americanos foram mortos na Somália.
A França, que era aliada do governo hútu, enviou militares para criar uma zona supostamente segura, mas foram acusados de não fazer o suficiente para conter a chacina. Geograficamente, Ruanda, localizada no centro da África, com um território pequeno, sem nenhum recurso mineral e interesse econômico das potências mundiais, não parecia digna de atenção.
5 INERCIA DA COMUNIDADE INTERNACIONAL E O ENVOLVIMETO DE PAISES EUROPEUS.
A organização RPF foi sendo ordenada de forma gradual, ocupando mais terreno. Em 4 de julho de 1994, suas forças avançaram para a capital, Kigali. Cerca de dois milhões de hútus fugiram em seguida pela fronteira com a República Democrática do Congo temendo atentados de vingança. Grupos de direitos humanos dizem que a RPF executou milhares de civis hútus quando eles dominaram o poder, todavia essa declaração é refutada pela RPF.
Apesar de ser algo pouco discutido e muito acobertado, o genocídio em Ruanda contou com participação de países europeus e da inércia e descasco gigantescos da comunidade internacional.
Em agosto de 1993, a comunidade internacional estimulou a assinatura dos Acordos de Arusha2, entre o governo de Ruanda e a Frente Patriótica de Ruanda (FPR), que visavam resguardar o retorno dos expatriados tutsi em Uganda e a coalizão entre o exército nacional e os rebeldes, além de instituir um governo de transição. Entretanto, o presidente ruandês Habyarimana, foi denunciado por traição pelo comando hútu, recusando à realização dos acordos. Nessa situação, a capital da nação (Kigali)passou a receber fornecimento de facões por aeronave franceses, que eram repartidos de graça aos habitantes.
Com a piora da situação em Ruanda, o comandante da Missão de Assistência da ONU para Ruanda mandou um telegrama ao Assessor Militar da Secretária-geral da ONU, sobre o risco de um combate civil e, em resolução, a ONU estabeleceu que não iria interceder, precisando apenas precaver as embaixadas da Bélgica, da França e dos Estados Unidos, assim como o presidente ruandês. Em sumo, nada foi feito.
Devido à carnificina, muitos territórios estrangeiros, como a França, retiraram seus cidadãos do local, sem conceder qualquer assistência aos ruandeses. Com a piora do massacre, o comandante da missão da ONU requisitou o envio de 5 mil homens para intermediarem, o que foi alterado pelo Conselho de Segurança, que minimizou o contingente para 270 soldados.
Essa resolução foi influída pelos EUA, que preferiram por estreitar sua representação em missões de paz da ONU e, consequentemente, fizeram frequentes delimitações nas resoluções, que propunham o envio de soldados, no Conselho. Diante da inércia internacional, muitos países africanos se mobilizaram para enviar forças para Ruanda. Pediram auxílio de material bélico aos EUA, que aceitaram, sob a condição de um arrendamento de 15 milhões de dólares com a ONU. Nesse meio-tempo, a França esquivava às análises dos repórteres e pesquisadores franceses, apontando que o confronto era em decorrência de lutas tribais. Depois de muita pressão, preferiu despachar uma expedição com a ONU, denominada Operação Turquoise, que, de maneira contrária, foi um influente auxílio aos comandos hutus no genocídio, ampliando a matança. Até hoje, há negacionismo quanto à participação francesa no genocídio.
5.1 TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL DE RUANDA
Como dizem os ruandeses, o genocídio é sobrenatural. Contudo, ainda mais sobrenatural é que o mundo inteiro está assistindo cegamente (ou não) o que está acontecendo com seus semelhantes. As causas e justificações do genocídio devem ser constantemente respeitadas para que novos incidentes não se repitam. Ruanda atualmente tem uma administração consistente, um dirigente que procura seriamente a “Unificação de Ruanda”. A instauração de tribunais, o perdão disseminado e o castigo com a conciliação são as melhores formas de edificar um antigo novo estado no qual tutsis e hutus possam existir em conformidade.
Posteriormente os genocídios, a comunidade internacional buscou uma medida, a instituição do Tribunal Penal Internacional para Ruanda (TPIR). Esse é um tribunal ad hoc3, ou seja, um tribunal fundado para sentenciar um caso específico, em um período específico, instaurado por meio da Resolução n.º 9554 do Conselho de Segurança, e poderia sentenciar acontecimentos que operaram entre 01/01/1994 e 31/12/1994 em Ruanda e territórios vizinhos. O tribunal suportaria sentenciar o crime de genocídio, crimes contra a humanidade e infrações à Convenção de Genebra de 1949 e do Segundo Protocolo Adicional.
As principais atividades judiciais do tribunal foram encerradas em 31 de dezembro de 2015, tendo indiciado 93 pessoas pelos crimes cometidos em Ruanda, com 61 condenações.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
É difícil dizer como tal genocídio ocorreu, e as razões são variadas e complexas. Você pode ser simplesmente dispensável para as pessoas.
A fonte de um genocídio o senhor jamais verá, está
enterrada bem no fundo nos rancores, sob um acúmulo
de desentendimentos dos quais herdamos o último.
Chegamos à idade adulta no pior momento da história
de Ruanda, fomos educados na obediência absoluta,
no ódio, fomos entupidos de fórmulas, somos uma
geração sem sorte’ (HATZFELD, 2005, p. 193-194)
Residimos em uma sociedade cujos interesses se concentram principalmente em questões materiais, resultando em uma compaixão ambígua em relação ao próximo. Ruanda, um país africano de pequenas proporções geográficas, encontra se situado em uma localização que não é considerada estratégica e carece de recursos atrativos para investimentos estrangeiros serem preservados.
Uma evidência eloquente entre a circunstância atual e a década de 1990 consiste no imediatismo com que as informações são difundidas por meio das redes sociais, sucedendo, espontaneamente, em um efeito global de aversão. No entanto, desta vez, é problemático se essa aversão decorrerá em uma interferência efetiva. Parte dessa hesitação é a aparente indiferença das Nações Unidas em resolver essa questão nos últimos 29 anos.
Ruanda atualmente é um dos territórios mais desenvolvidos da região, porém isso não mascara os espíritos presentes nas lembranças da população, especialmente daqueles que, por serem de determinada etnia, são apavorados pelo veredicto de morte – estando ainda vivos e em liberdade muitos dos responsáveis pela matança.
REFERÊNCIAS
ACORDO de Arusha. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em < http://pt.wikipedia.org/wiki/Acordo_de_Arusha >. Acesso em 21 de junho de 2023
DAMIANO, Graciela. Tutsi, Paul Kagame se diz ‘ruandês’ acima de tudo. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/story/2003/08/030826_ruandagd.shtml >. Acesso em 30 jun. 2009.
EXPANSÃO bantu. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Expans%C3%A3o_bantu > Acesso em 20 de junho de 23
GOUREVITCH, Philip. Gostaríamos de informá-los de que amanhã seremos mortos com nossas famílias; tradução José Geraldo Couto. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
HATZFELD, Jean. Uma temporada de facões: Relatos do genocídio em Ruanda; tradução Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Companhia de Letras, 2005.
HERNANDEZ, Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea São Paulo: Selo Negro, 2008
HISTÓRIA de Ruanda. Wikipédia, a enciclopédia livre. Disponível em: < http://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_de_Ruanda > Acesso em 21 de junho de 2023
KAPUSCINSKI, Ryszard. Uma palestra sobre Ruanda In: Ébano. São Paulo: Companhia das
Letras, 2002.
KI-ZERBO, Joseph. História da África negra. Lisboa: Publicações Europa-América, s.d., 2 v.
LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. São Paulo: Paz e Terra, 2004.
1 Acredita-se que os bantus sejam um povo oriundo da Nigéria que posteriormente migraram para a Zâmbia. Por volta de 2000 aC, migraram para as florestas tropicais da África Central, possivelmente concertante as influências climáticas. Muitos anos depois, eles se distribuíram também pela África Austral e Oriental.
2 Os Acordos de Arusha, assinados em 2000, puseram fim a uma guerra civil que ceifou centenas de milhares de vidas graças à divisão do poder entre os dois principais grupos étnicos, os hútus e os tutsis, mas apenas cinco anos depois contou com a presença de todos os opositores do acordo.
3 Tribunais ou juízos estabelecidos, excepcionalmente, para sentenciar crimes específicos, subsequentes ao acontecimento ou até mesmo, em razão da figura e implicam um caráter transitório.
4 Reconhecido pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas a 8 de novembro de 1994 (Resolução n.º 955 (1994), de 8 de novembro de 1994) e modificado pela Determinação do Conselho de Segurança n.º 1329 , de 30 de novembro de 2000. Estipulava a formação de um Tribunal para processar os culpados pelo genocídio e outras infrações ao Direito Internacional Humanitário.