Publiquei o artigo Laços Humanos: Como Combater a Economia do Tráfico Sexual de Mulheres, originariamente, no Livro Criminalidade Econômica Empresarial, em homenagem ao Professor Doutor Artur Gueiros, organizado pelos Professores Doutores Guilherme Krueger, José Maria Panoeiro e Cecília Choeri.

A versão original em PDF está disponível no final deste texto, para fins acadêmicos e educativos.

Como citar:

PEREIRA, Igor.. Refazendo Laços Humanos: Como Combater a Economia do Tráfico Sexual de Mulheres. In: Cecília Choeri, Guilherme Krueger, José Maria Panoeiro. (Org.). Criminalidade Econômica Empresarial – Escritos em Homenagem ao Professor Artur Gueiros. 1ed.São Paulo: Tirant Lo Blanch, 2022, v. 1, p. 706-714.

Laços Humanos: Como Combater a Economia do Tráfico Sexual de Mulheres

Por Igor Luis Pereira e Silva

Can’t you hear me?

I’m not comin’ home

Do you understand?

I’ve changed my plans.

(Billie Eilish, My Future)

  1. Introdução

Escrevi este texto com o objetivo de analisar o tráfico sexual a partir de um viés econômico. Se a exploração sexual existe porque é lucrativa, então é importante analisá-la a partir da sua economia, para conseguir oferecer aos agentes criminais um cenário útil, para que tracem as melhores estratégias para a proteção das mulheres sobreviventes.

A ideia é apresentar o tráfico de mulheres como uma questão de ordem econômica. Partindo desse cenário, os agentes estatais podem ter uma melhor compreensão dos valores e finanças em jogo, elevando o combate ao tráfico sexual na sua ordem de prioridades, justificando a distribuição de recursos humanos e financeiros para desajustar a economia do crime. Assim, as perguntas que responderei neste artigo são simples: de modo geral, como se estrutura a economia do crime de tráfico de mulheres para exploração sexual? E qual o melhor modo de combatê-la?

  1. Combatendo a economia do tráfico de mulheres

O negócio de tráfico humano se prolifera no mundo. Refugiados pobres chegam a pagar de cinco mil a trinta mil dólares por transporte clandestino, em condições desumanas e inseguras, frequentemente arriscando as suas vidas. Segundo estimativa das Nações Unidas, até 4 milhões de pessoas são contrabandeadas para países estrangeiros anualmente. O negócio gera até US$7 bilhões anuais em lucros ilícitos para as organizações criminosas (BERTONE, 1999, p. 5).

As razões do tráfico são, obviamente, econômicas, mas as sobreviventes também podem entrar nessa teia pelas mesmas razões. Ao estudar as escolhas das mulheres, não podemos esquecer das estruturas político-econômicas que a condicionam e a vulnerabilidade delas diante de violências estruturais. Parte significativa do fluxo migratório entre países ocorre por razões econômicas. As mulheres migram buscando melhores condições econômicas de vida. A migração de gênero com base na exploração sexual é uma falha significativa de um Brasil despreocupado com as suas filhas, que abandonam a sua terra natal para venderem o que lhes sobra: os seus corpos.

O US Department of State Report, do ano de 2015, identifica o tráfico humano como uma das organizações criminosas que mais crescem no mundo, logo após o tráfico de armas e de drogas. É também um crime dificílimo de se compreender, dada a sua natureza clandestina (RAHMAN, 2011, p. 58) e o interesse de parte das vítimas de não serem descobertas (a chaga da prostituição, usualmente, demove a mulher de colaborar com as autoridades policiais, isso sem falar do receio de retaliações migratórias ou até prisão).

O crescimento exponencial do tráfico sexual ocorre pela entrada do crime organizado, a formação de redes transfronteiriças e a crescente transnacionalização em várias camadas do turismo. Saskia (2003, p. 52-55) alerta que há enormes possibilidades de expansão geral da indústria, em um contexto econômico em que há um número crescente de mulheres com poucas ou nulas opções de emprego e países inserindo a exploração sexual como parte da indústria do entretenimento, como estratégia de desenvolvimento econômico: “(…) o próprio comércio sexual pode se tornar uma estratégia de desenvolvimento em áreas com alto desemprego e pobreza, e para governos desesperados por receitas e reservas de divisas.” (SASKIA, 2003, p. 53)

Nós precisamos garantir que o governo brasileiro não utilize a prostituição como solução para o desenvolvimento regional e substituta das políticas sociais. Além de ser uma aposta contraprodutiva em termos de desenvolvimento de mão-de-obra e turismo sustentável, conflita com a dignidade humana e a igualdade de gênero. No nosso Brasil atual, o desemprego profundo, a desigualdade, a falta de programas sociais e as poucas oportunidades de trabalho podem condenar uma geração de mulheres pobres à exploração sexual. Mesmo que diversas mulheres optem por evitar a prostituição como meio de vida, isso não significa que ela não esteja presente, no dia-a-dia das adolescentes e mulheres pobres, como formas de ganhos esporádicos (“corres”) para custear atividades básicas e emergenciais.

As explorações sexuais de mulheres não são um fenômeno único. Elas, eventualmente, podem se adequar a tipos penais distintos. Envolve a pornografia, que pode estar diretamente envolvida na teia do tráfico de mulheres, o turismo sexual, a venda de noivas pela internet, serviços sexuais para militares, a prostituição em bordéis e novas explorações, que podem se esconder nos novos entretenimentos sexuais, como o only fans. Bertone (1999, p. 5) explica que o tráfico de mulheres é um complexo subconjunto dos negócios em que as mulheres são coagidas, escravizadas, sequestradas, torturadas ou estupradas, para servir sexualmente, em regra, a homens e dar lucro à indústria marginal do sexo.

Por mais que a violência física ou psicológica esteja frequentemente presente no tráfico de mulheres, às vezes ela não é tão clara. Assim, quando estivermos diante de uma situação em que se verifique aparente “consentimento” da vítima em ser traficada, temos que lembrar do atual estágio das pesquisas quantitativas e qualitativas sobre esse tema, que indicam impactos negativos relevantes de saúde mental em mulheres sobreviventes da prostituição[1].

O Código Penal Brasileiro andou mal em relação a esse assunto, conflitando com as diretrizes internacionais de direitos humanos e inserindo polêmicas e retrocessos na proteção dos direitos das mulheres: no tipo penal do artigo 149-A, do CP, inseriu os elementos da grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, como condicionantes para que haja o crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. A “inovação” foi tão bizarra, que também condiciona os crimes de remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo e a submissão a condições análogas de escravo, todos no mesmo tipo penal, como se fosse constitucionalmente possível a alguém consentir a se submeter a essas práticas.

Felizmente, é fácil resolver essa trapalhada, interpretando conforme a constituição o artigo 149-A, do CP. O jurista não pode interpretá-lo de modo a violar os princípios da igualdade de gênero, da integridade psicofísica e da dignidade humana. Nesse sentido, o legislador estabeleceu no caput, do art. 149-A, elementos que levam à interpretação analógica. Grave ameaça, violação, coação e fraude são apenas exemplos do modus operandi do crime, que pode ocorrer dos mais diversos modos, inclusive a partir do mero convencimento da vítima. Afinal, o abuso é o uso ilegítimo e incorreto, é a exploração sexual em si. O abuso é a finalidade em si, que é descrita nos incisos do tipo penal. Essa interpretação conforme a constituição, sem redução do texto, evita a necessidade de declaração de inconstitucionalidade do tipo penal, por violação do princípio da proporcionalidade, uma vez que estabeleceria uma proteção insuficiente à liberdade individual, dignidade sexual e ordem socioeconômica.

O convencimento da vítima, em situações econômicas adversas, também é abuso, configurando o crime de tráfico de pessoas para fins de exploração sexual. A partir dessa discussão, fica simples entender que, no tráfico de pessoas, pode ou não haver consentimento da mulher. Há crime em ambas as hipóteses.

O tráfico de mulheres é um fenômeno de ordem econômico-política. É a perversão da interação da política e da economia, em um contexto de globalização, no qual as mulheres se tornam commodities em suas formas mais básicas e desmoralizantes (BERTONE, 1999, p. 7). O capitalismo avança sobre os corpos em dois graus: banalizando a sexualidade humana, fetichizando os corpos como produtos do entretenimento; e mercantilizando as experiências sexuais, tornando-as peças-chave da lógica capitalista. A prostituição se torna cotidiana em cenários de estilhaçamento dos sentimentos humanos.

A internacionalização do tráfico sexual se origina na internacionalização político-econômica do capitalismo. Traduz-se em uma lei da demanda e da oferta internacional, onde mulheres pobres servem homens de países industrializados e em desenvolvimento. As mulheres são convencidas de que prover este tipo de serviço constitui a ordem aceitável das coisas (BERTONE, 1999, p. 7-8).

Se a exploração sexual está relacionada às leis de oferta e demanda, podendo inclusive ter contornos migratórios de aparente legalidade, como ida de mulheres para o exterior para a realização de cursos de línguas ou au pair, quais são as estratégias culturais que cumprem o papel de convencer essas mulheres a se submeterem à exploração sexual como ordem aceitável das coisas? Quais artifícios culturais legitimam a ida destas mulheres para o exterior e entre estados brasileiros para suprir a demanda dos homens? A quem serve a indústria do empoderamento? Essas são as perguntas que devemos fazer para compreender parte da dinâmica da ordem sexual contemporânea.

O tráfico sexual muda a estratégia dependendo do país de destino e, obviamente, oferta mulheres de acordo com a demanda. Elas podem não voltar para casa ou não manter contato com a família durante o exercício da prostituição, seja porque têm medo do ostracismo, seja porque o tráfico cortou o canal de comunicação (BERTONE, p. 8, 1999). Não há garantias que as mulheres irão acompanhadas de outras mulheres para o exterior, nem que haja amigas trabalhando no país de destino. Esses laços de amizade podem facilitar a decisão, mas não são determinantes. Há casos em que o único elemento de ligação é o fator econômico: a promessa de dinheiro no exterior.

As mulheres podem ou não enviar dinheiro para a família. De novo, o medo do ostracismo oriundo da prostituição pode evitar que isso aconteça. A desestruturação dos laços familiares também pode ser motivo para que elas não enviem o dinheiro. Se um país ficou muito pobre, sendo o fator determinante de pauperização da família, pode ser que as mulheres entrem para a prostituição justamente para enviar dinheiro para os familiares, porque as regiões estão abaladíssimas. É o caso, por exemplo, da prostituição das venezuelanas em Roraima. Outro fator econômico importante advém de um dos riscos da atividade sexual: contrair doenças sexualmente transmissíveis. Nesse caso, a mulher pode não ter mais saúde para a realização de diversas atividades de trabalho, sendo importante que ela faça uma poupança Isso torna ainda mais difícil para elas voltar ao país de destino, uma vez que terão restrições nas atividades laborativas.

É interessante como o Direito Penal Econômico não desempenha um papel apenas de análise dos tipos penais que protegem a ordem socioeconômica. Questões econômicas são determinantes nos mais diversos crimes e crimes próprios do direito penal econômico podem ser praticados para garantir outros crimes. Por exemplo, a necessidade de se lavar capital oriundo do tráfico de mulheres. Como podemos perceber até aqui, as relações entre tráfico de mulheres e o direito penal econômico são duas: a) o direito penal regula e torna ilícita parte significativa da economia do sexo, produzindo impactos econômicos com a proibição e demandando estratégias de prevenção, e repressão. Assim, o direito penal proíbe esse tipo de ordem socioeconômica para proteger a dignidade da mulher e protege outros tipos de organizações econômicas. Se a Administração Criminal conseguir efetivamente prevenir e reprimir os fatores do turismo sexual no Brasil, o público-alvo de turismo mudaria em diversas partes do país, incentivando outros ajustes da ordem econômica. Portanto, combater o tráfico sexual é fomentar outro tipo de turismo e a ordem econômica que dele deriva; b) como o tráfico sexual e suas atividades correlatas são extremamente lucrativas, diversos crimes propriamente econômicos são praticados para garantir o seu lucro, sendo a lavagem de capitais o exemplo mais claro. A lucratividade do tráfico sexual faz com que organizações criminosas poderosas tomem conta desse mercado (BERTONE, 1999, p. 10).

É fácil constatar que existe no Brasil certa tolerância ao mercado sexual, o que jamais se pode confundir com adequação social, pois esse princípio não pode ser aplicado em oposição aos direitos fundamentais. O Estado apoia implicitamente o tráfico sexual, quando faz “vista grossa” à migração sexual (BERTONE, 1999, p. 11). Ademais, a tolerância do Estado, por conivência com o crime organizado, não implica em dizer que a sociedade brasileira aceita a economia da exploração sexual. E, mesmo se aceitasse, o princípio da adequação social não pode ser aplicado contra a igualdade de gênero e a dignidade humana, pois aquele princípio existe para evitar que se considere crime condutas de acordo com a ordem social atual, e não contrárias a ela, em posição adversarial aos direitos fundamentais.

As políticas públicas de combate ao tráfico sexual, no entanto, não podem punir as vítimas, sob pena de serem contraprodutivas. Ao controlar o tráfico de mulheres, o Estado não deve puni-las, mas protegê-las, inclusive estudando estratégias migratórias possíveis e inserção no mercado formal de trabalho. Se medidas não forem tomadas em âmbito global para impedir que mulheres sejam criminalizadas por estarem envolvidas na prostituição, será mais difícil convencê-las a colaborarem com as autoridades para desmantelar o tráfico. Os Estados devem ter como objetivo primordial refazer os laços humanos que são destruídos pela exploração sexual. Proteger as vítimas deve ser sempre a prioridade.

Bertone (1999, p. 12-13) alerta que não devemos cair no erro de entender que o tráfico sexual é inofensivo. Ele traz graves consequências para a economia futura, a estrutura social e os avanços políticos dos países que dependem fortemente dessas atividades. É uma forma de escravidão, que é meio ineficaz de serviço econômico. Os corpos das mulheres também não são renováveis, mantendo-as em uma escravidão econômica e social, sem educá-las para uma atividade produtiva. Além do mais, os estigmas na comunidade internacional prejudicam o desenvolvimento de países que exploram mulheres sexualmente, dificultando investimentos e a renovação do turismo em um contexto econômico sustentável. Em longo prazo, países como o Brasil e a Tailândia seriam mais bem-sucedidos, se educassem as suas mulheres para exercerem trabalhos complexos, fomentando a economia formal com mão-de-obra especializada. Por exemplo, o Brasil carece de desenvolvedores de tecnologias de serviços na internet. Por que não educar mulheres pobres para suprir essa demanda?

Encorajar mulheres carentes a se envolver com a prostituição é desistir dos ideais dos direitos humanos, objetificando-as em posições de servidão, sem educá-las sobre os seus corpos e suas posições de valor. Bertone (1999, p. 19), inclusive, diz que nossos papéis, como homens, é de compreender a importância da educação das mulheres e não incentivá-las a exercerem trabalhos perigosos, onde correrão risco de vida e bem-estar.

Chuang (2006, p. 156) reconhece a importância de medidas repressivas nas estratégias antitráfico, sexuais ou não, mas aponta que elas devem vir acompanhadas de medidas preventivas e de proteção à vítima. A luta contra a exploração sexual envolve combater as causas que fazem as mulheres aceitar esses trabalhos perigosos, justamente porque o tráfico acompanha as tendências econômicas migratórias em geral. Quanto mais dinheiro tiver a elite de um país, mais ela terá para gastar com a exploração sexual. No entanto, combater a demanda também não é uma tarefa simples, porque quando se reprime um determinado modo de exploração sexual (por exemplo, a prostituição de rua), ela, eventualmente, migra para outras esferas: casas de prostituição, pornografia, clubes de dança, etc.

Nesse sentido, o combate à exploração sexual deve envolver medidas repressivas e preventivas globais, de modo a atacar os mais diversos modos de exploração sexual e, se possível, ao mesmo tempo, tendo sempre em conta que a prioridade é proteger as vítimas. Esse esforço administrativo e financeiro é para a proteção da dignidade das mulheres. Com a ajuda delas, é possível traçar estratégias para qualificar a mão-de-obra brasileira, colaborando para o desenvolvimento econômico das periferias. Enfrentar a pobreza, o desemprego, a discriminação e a violência de gênero, entre outros fatores, que aumentam a vulnerabilidade da mulher ao tráfico é uma tarefa gigantesca (CHUANG, 2006, p. 163), mas não existe caminho curto. Estamos diante de um crime que tem origens econômicas e é capaz de reestruturar a economia do turismo das metrópoles mundiais, caso a migração seja de larga escala e o Estado tolere o estabelecimento desse mercado desumano.

O tráfico de mulheres é uma das pontas tristes do iceberg, que esconde as dinâmicas da pobreza das mulheres das periferias. A política de “lei e ordem” não resolve o problema, porque não modifica as condições culturais e sociais que geram o tráfico. A batalha é mais profunda e precisamos aceitar o desafio de ver as coisas como elas são. Estamos diante de um circuito alternativo da globalização, que precariza a mão-de-obra da mulher, normalizando culturalmente a exploração sexual, a partir da indústria do entretenimento, aproveitando-se das vulnerabilidades econômicas delas para traçar uma nova ordem econômico-sexual, onde as mulheres pobres são o produto principal:

Estamos vendo o crescimento de uma variedade de circuitos globais alternativos para ganhar a vida, obter lucro e garantir a receita do governo. Esses circuitos incorporam um número crescente de mulheres. Entre os mais importantes desses circuitos globais estão o tráfico invisível de mulheres para a prostituição, bem como para o trabalho regular, as exportações organizadas de mulheres como noivas, enfermeiras e empregadas domésticas e as remessas enviadas de volta aos seus países de origem (…). Alguns desses circuitos operam parcial ou totalmente na economia subterrânea. O surgimento desses circuitos e / ou de sua escala global está ligado às principais dinâmicas da globalização econômica nas economias altamente desenvolvidas e em desenvolvimento. A cidade global é um tipo de local que torna visível a formação / expansão de uma demanda pelo que esses circuitos entregam e, portanto, a lucratividade (relativa) desses circuitos. Nos países em desenvolvimento, os principais indicadores das condições que promovem a oferta de trabalhadores e a formação desses circuitos são o pesado e crescente fardo da dívida pública, o crescimento do desemprego, os cortes bruscos nos gastos sociais do governo, o fechamento de um grande número de empresas em setores frequentemente bastante tradicionais orientados para o mercado local ou nacional e a promoção do crescimento orientado para a exportação. O crescimento de uma economia global trouxe consigo uma infraestrutura institucional que facilita os fluxos transfronteiriços e representa, nesse sentido, um ambiente propício para esses circuitos alternativos. (SASSEN, 2003, p. 55-56)

Estes circuitos alternativos da globalização não possuem limites legais. Eles atuam em diversas camadas de ilegalidade, envolvendo organizações criminosas preparadas para se relacionar com o Estado e o mercado. Eles não compõem dinâmicas exclusivamente criminais, mas eventualmente as envolvem, relacionando-se com a ordem econômica global. E, no caso da exploração sexual, com prováveis ligações com a indústria do entretenimento.

  1. Conclusão

A economia do crime de tráfico de mulheres para fins de exploração sexual se estrutura globalmente, com focos regionais, e valendo-se de circuitos alternativos da globalização. A regra é que partam de países em desenvolvimento para países desenvolvidos, da periferia para o centro, de regiões pobres para as ricas. Mesmo quando se dá em âmbito local, é possível observar essa mesma lógica, onde a prostituição ocorre em bairros ricos com mulheres oriundas de bairros pobres. A exploração sexual tem o poder de estruturar o turismo das metrópoles, relacionando-se facilmente com o mainstream, por meio de agentes de intermediação.

A definição das rotas do tráfico de mulheres ainda são imprecisas, dada a dificuldade de se rastrear o caminho do crime e obter a colaboração das vítimas. Esforços de esquematização dos dados existentes e elaboração de novos dados quantitativos e qualitativos ainda são necessários. Há indícios de que a exploração sexual está em franco crescimento. Não devemos pensar o tráfico sexual apenas como um crime contra a liberdade individual ou a dignidade sexual. Ele é também um crime contra a ordem econômica, porque é capaz de degradar a indústria do turismo, modificando a sua demanda nas capitais de exploração sexual. Ademais, impõe diversas dificuldades à qualificação das mulheres da periferia, sendo um empecilho ao desenvolvimento nacional. Portanto, essa criminalização protege múltiplos bens jurídicos, dentre eles, a ordem socioeconômica.

O combate ao crime de tráfico de mulheres envolve estratégias globais de prevenção e repressão, com foco absoluto na proteção das vítimas e na inserção no mercado formal de trabalho. Para tanto, é necessário cooperação internacional e padrões globais de direito imigratório, impedindo que as mulheres sejam punidas ou deportadas por serem exploradas sexualmente. As vítimas não podem sofrer duplamente: em razão do crime e pelas consequências da sua descoberta. As medidas antitráfico devem ser interdisciplinares, sem se limitar à ponta do iceberg, enfrentando as causas que levaram as mulheres a ficarem vulneráveis ao mercado sexual. A educação de mulheres da periferia, para trabalhar em novos mercados de trabalho tem o potencial de acelerar o desenvolvimento nacional. Enquanto o Direito Penal faz o seu papel de desestruturar as organizações criminosas sexuais, o Direito Administrativo deve traçar as estratégias de políticas públicas preventivas, em um plano holístico de valorização das mulheres brasileiras.

O Brasil passa por crises econômicas, sociais, políticas, ambientais e biológicas profundas. Talvez estejamos no momento mais frágil da nossa história. Temos uma “ficha criminal” de objetificação e hipersexualização das mulheres brasileiras. A indústria do entretenimento brasileira é uma das mais sexualizadas do mundo. A psicologia começa a estudar os impactos negativos do sexo casual, que são muito piores quando relacionados à prostituição. As condições estão postas para o aprofundamento da exploração sexual das mulheres brasileiras. Não podemos perder essa batalha. Conto com cada um de vocês para virarmos esse jogo.

Referências Bibliográficas

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TRUE, Jacqui. The Political Economy of Violence Against Women. Oxford University Press, New York, 2012.

[1] A questão do consentimento na prostituição é um dos temas mais densos no tráfico de mulheres. Não é o meu objetivo me aprofundar nesse assunto neste artigo. Porém, se o leitor quiser saber mais sobre o tópico, recomendo a leitura de Rössler, W., Koch, U., Lauber, C., Hass, A.‐K., Altwegg, M., Ajdacic‐Gross, V. and Landolt, K. (2010), The mental health of female sex workers. Acta Psychiatrica Scandinavica, 122: 143-152. https://doi.org/10.1111/j.1600-0447.2009.01533.x.